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quarta-feira, 6 de julho de 2011

SARMIENTO E O FACUNDO

Roberto Albuqueque dos Santos

 

O Facundo é uma obra que até hoje divide as opiniões acerca do olhar de Sarmiento concernente a constituição não só política, mas também social da Argentina. Publicado há mais de um século e meio, sua analogia entre os habitantes dos pampas com os políticos argentinos, seu modo de retratar os variados tipos dessa região caracterizando-os de bárbaros, enquanto que, os habitantes das cidades eram os civilizados – principalmente os que se adequavam ao modelo europeu – e, sua clara demonstração em excluir do cenário argentino aquela barbárie substituindo-a pela civilização, são alguns dos pontos que recheiam o texto de Sarmiento dando-lhe um tom quase único de debates abrindo um leque significativo para a concepção de teses e temáticas a partir de seu olhar critico as instituições governamentais, sua clara pretensão de mudanças no cenário social da região sul latina do Prata, e por que também não dizer, um preconceito generalizado não só aos modos rústicos do gaúcho mas ao próprio; ademais, fica clara sua aversão a aceitação européia na sociedade o convívio indígena com sua cultura, costumes e tradição.
            Assim é o Facundo, uma obra que exterioriza os conceitos de seu autor referente ao temas que ele aborda; que denuncia seu sentimento indomável desde sua tenra mocidade ao se ver frente a um governo ao qual se oporá até vê-lo terminado. Facundo, que como obra, lança seu autor a níveis além do seu território dando-lhe reconhecimento internacional, e também a oportunidade de ser tanto reverenciado como rejeitado, amado ou odiado, bem quisto ou enquistado. Mas aquém da qual que seja a escolha, não obscurecerá o trabalho de Sarmiento, até porque, tudo o que já foi dito e o que se dirá dele e de sua obra, tão somente enriquecerá o debate a sua volta e, o presente texto, não tem a pretensão de encerrara-lo, até porque não é este seu objetivo.                          

SARMIENTO – O HOMEM 

            Domingo Faustino Sarmiento, nasceu em uma província de San Juan, Argentina, em 15 de fevereiro de 1811. Mesmo advindo de uma família pobre, tinha antepassados de renome. Sua infância e formação foram profundamente influenciadas por sua mãe e foi considerado um autodidata, característica contada em seu livro autobiográfico Recuerdos de la Província.  Alcançou a adolescência vivendo em um país que se via dividido na construção do Estado Nacional. Essa luta tinha como protagonistas os unitaristas e os federalistas, optando Sarmiento, em seguir a causa unitarista, essa opção política o leva a se opor a Rosas (entre outras causas, por esse ter firmado acordo com caudilhos do interior) em 1830. Por assim fazer, se ver exilado no Chile no ano seguinte. Rosas, por sua vez, governou com mão de ferro por vinte anos. Cinco anos após o exílio, Sarmiento volta a San Juan quando os ares políticos se tornam mais propícios. Lá, funda a Sociedad Literária e continua sua oposição aos federalistas. Assim, uma vez mais, e dessa, em 1840, por se envolver com problemas políticos, ao se aliar a uma conspiração unitária, é levado à prisão e depois exilado novamente no Chile. Lá, trabalhou no comércio, mas logo se viu penetrando-se no mundo intelectual e, assim pouco tempo depois, estava a escrever artigos no jornal El Mercúrio, da cidade de Valparaiso.
Na política, filiou-se a Manuel Montt, líder dos conservadores, posterior presidente do Chile (1841). Tendo os conservadores criado o diário El Progresso, Sarmiento junta-se a eles e, em sua redação, escreve a obra que lhe introduziria como um dos maiores escritores argentinos e mundiais: Facundo ou Civilização e Barbárie. Ainda no Chile, sob a proteção de Manuel Montt, foi encarregado de aprimorar o sistema de educação pública chilena. Sarmiento, assim, viajou pela Europa e pelos Estados Unidos, estudando seus sistemas educacionais para depois introduzir seu modelo na América Latina.

SARMIENTO E O FACUNDO

            O livro, em sua gênese, apareceu como uma edição em folhetim editado no jornal El Progresso em meados do século XIX. Depois, com a importância de seu conteúdo e apreciado por parte seus leitores, a obra toma vultos estrondosos indo a limites pós-fronteiras argentinas e invadindo o território da América Latina criando debates controversos e formulando conceitos acerca do contexto latino americano.
           Tendo por base a biografia de Facundo Quiroga, um caudilho – liderança que exerce um poder quase absoluto, contando para isso a lealdade de seus seguidores –, Sarmiento revela seus objetivos políticos defendendo seu ponto de vista e desqualificando seu inimigo. Para ele, Facundo era um exemplo, um estereótipo de uma sociedade que deveria ser destruída para dar lugar a um novo tipo de convívio, ou seja, o Facundo era um modelo de viver bárbaro e, portanto, deveria ser rejeitado dando lugar a um modelo civilizado. Nesse contexto, o autor escreveu sua obra defendendo os unitaristas e procura demonstrar os benefícios de uma civilização que se conformasse ao modelo europeu e desmerece a forma de vida do gaúcho e sua cultura própria, local. Assim, tenta comprovar com exemplos e comparações como o gaúcho é bárbaro considerando para isso a influência que o meio exerce sobre o individuo. Esse conflito existente na obra (civilização versos barbárie) pode ser notado na dualidade que ele faz das culturas, ou seja, não é apenas dicotômica sua visão política; seu engajamento em determinar a cultura gaúcha bárbara é flagrante, pois para ele ela é uma cultura ingênua e desalinhada. Isso fica evidente no momento em que Sarmiento se vale da geografia Argentina e descreve os tipos gaúchos. Para ele, o gaúcho é um homem que explica os acontecimentos por mais simples que seja através de “(...) idealizações morais e religiosas, mescladas de fatos naturais, mas mal compreendidos, de tradições supersticiosas e grosserias” [1]. Define ainda a estrutura poética do gaúcho – como já citada – “(...) popular, cândida e desalinhada (...)” [2]. Seus músicos são camponeses que compõem estilos musicais que os denunciam, como “O triste, (...) canto frígido, lamurioso, natural ao homem no estado primitivo de barbárie, segundo Rousseau (...) A vidalita, canto popular com coros (...) me parece herdado dos indígenas (...)” [3], portanto bárbara.
     Sarmiento analisa a forma de vida desses habitantes dos pampas classificando-os. Para ele “O mais conspícuo de todos, o mais extraordinário, é o rastreador[4]. Esse tipo é “(...) um personagem grave, circunspeto, cujas asseverações fazem fé nos tribunais inferiores” [5]. Ainda mais, em suas asseverações, revela que “Depois do rastreador vem o vaqueano, personagem eminente e que tem em suas mãos a sorte dos particulares e das províncias (...) é um gaúcho grave e discreto (...) é quase sempre fiel a seu dever (...) o vaqueano anuncia (...) conhece a distância entre um lugar e outro (...) [6]. Além desse aparece o Gaúcho Mau. Esse  gaúcho ”(...) é um tipo de certas localidades (...) seu nome é temido (...) É um personagem misteriosos, mora no pampa, seu albergue são os moitas de cardos (...) o que o Gaúcho Mau monta é um parelheiro pangaré tão celebre como seu dono (...) não é um bandido (...) rouba, é verdade, mas é sua profissão, seu tráfico, sua ciência” [7]. O gaúcho cantor (diferente do cantor camponês), faz um registro particular da história tendo por base a Idade Média. Segundo Sarmiento, esse tipo é a “(...) idealização daquela vida de revolta, de civilização, de barbárie e de perigos (...) é o próprio bardo, o vate, o trovador da Idade Média, que se move na mesma cena, entre as lutas das cidades e do feudalismo dos campos, entre a vida que se vai e a vida que se aproxima (...) está fazendo ingenuamente o mesmo trabalho de crônica, costumes, história, biografia que o bardo da Idade Média (...) não tem residência fixa (...) mistura em seus cantos heróicos o relato de suas próprias façanhas (...) contudo, a poesia original do cantor é pesada, monótona, irregular quando se abandona a inspiração do momento” [8].  O objetivo de Sarmiento ao se referir aos personagens dos pampas é o de revelar a cultura e costumes de sua terra natal, comparando-os ao processo político e governamental, pois, para ele seria “(...) impossível compreender nossos personagens políticos, nem o caráter primordial e americano da sangrenta luta que despedaça a República Argentina” [9]. Esses personagens estariam “(...) nos caudilhos, cujos nomes ultrapassaram as fronteiras argentinas(...)” [10].
            Sarmiento usa sua obra para justificar seus valores políticos e, assim, procura reescrever a história usando seu ponto de vista. Sua analogia tem por foco atingir Rosas, daí, produz a obra baseada na biografia de Facundo – aliado de Rosas – onde o define como bárbaro e que sua vitória representava a submissão da civilização a barbárie. Sua expectativa era de uma Argentina unida, forte e liberal e isso seria possível com um governo centralizado que a aproximava da sociedade européia e, para tanto, seria necessária a troca de um modelo político para dar lugar a outro. A antipatia de Sarmiento pelo governo Rosas era sua pretensão de dar autonomia às províncias e, ademais, o governante afundara o país em constantes guerras civis. Sua opção pelo unitarismo tem como uma das conseqüências sua formação intelectual baseada no determinismo, onde  o meio forma o homem e isso explicava a forma rústica dos gaúchos, pois viviam em um meio rústico e selvagem e isso justificava sua forma bárbara de ser para adaptar-se ao meio. Outro fator desse determinismo era a própria região geográfica onde estava assentada a Argentina. Para ele, a topografia era propensa a uma unidade, e assim, também deveria se dar com a política, ser unificada e centralizada.
            Quanto ao aspecto europeu de ser, ou seja, uma sociedade ideal para ser imitada e adotada na Argentina, leva-o a excluir da história a população indígena, considerando-as uma raça pré-histórica e que não deveria ter sido aceita pela colonização espanhola na sociedade. Concorda com os americanos que exterminaram os índios em sua conquista do Oeste. Fica assim evidente seu determinismo, onde, uma sociedade deve desaparecer dando lugar à outra, ou seja, a barbárie deveria ser eliminada dando lugar a civilização. A justificava para o massacre, se fosse preciso, seria a necessidade para o progresso e o desenvolvimento do país. Ao comentar a obra de Sarmiento, Maria Ligia Prado, em seu texto "Para ler o Facundo", diz: ”No desejo de exterminar o ‘atraso’ que se consubstanciava nos protótipos do gaúcho e do índio, promoveu campanha sistemática contra as últimas montoneras federalistas e preparou as definições da atuação do Estado contra os índios, que culminaram com a chamada ‘campanhas do deserto’ em 1880, que definitivamente emperrou os remanescentes indígenas para o sul do país” [11]. 
Essa demanda entusiástica em excluir o bárbaro da paisagem onde deve estar a civilização, tende a influenciar o escritor brasileiro Euclides da Cunha em sua produção intitulada “Os Sertões”. Euclides inicia seu livro com a geografia e não se atém ao descrever os tipos da terra. Classifica o jagunço como uma pessoa destemida, mas em contrapartida o tabaréu é ingênuo e “O sertanejo é, antes de tudo forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” [12]. Mas Euclides não era o Sarmiento. Embora influenciado por sua obra, esteve em pleno campo de batalha e, contrário ao determinismo de Sarmiento, concebia a idéia que o homem modificava o meio e não vice-versa. Embora fosse partidário de que a civilização deva superar a barbárie, não era alheio que a própria barbárie era um ato dos civilizados em busca da defesa de seus interesses. Enquanto Sarmiento produziu sua obra no exílio, Euclides presenciou o massacre de Canudos, fato que o fez ser antagônico a posições encontradas no Facundo. Embora tenha excluído de sua obra os índios e os negros, Euclides não admite chamar uma campanha militar de justa, antes, a define de charqueada. Sarmiento define uma arma simples, como uma faca na mão de um gaúcho, como barbárie; já uma espada na mão de um oficial, um sinal de civilização. A degola, para ele, não é um massacre generalizado e uma chacina é uma campanha militar.
            O Facundo foi lido e interpretado tanto pelos partidos de direita como pelos de esquerda e dividiu as críticas. Para uns foi motivo de entusiasmo, para outros, no entanto, motivo de rancor voraz. Muito se diz de Sarmiento até mesmo que ele se tornou um inimigo da pátria por ter ajudado a espalhar ideologias externas que absorviam as pretensões e os interesse dos estrangeiros na Argentina, ou até mesmo na América Latina. A obra de Sarmiento já foi definida como biografia, produto panfletado com interesses políticos e até mesmo como bibliografia para estudos sociológicos. Seus personagens, suas paisagens são temas em seu texto que o carrega de imagens, idéias e símbolos da Argentina. O Facundo, embora seja um estereótipo de barbárie, não passa de um personagem natural do Prata. Ele é usado por Sarmiento para que esse possa estar na história e, essa história, possa ser usada para se compor um discurso de cunho com características puramente político, afim de que por esse, possa se formar uma nação segundo seu ponto de vista.
            Segundo Maria Ligia Prado, Sarmiento “Obteve êxito em sua carreira política, porque coincidentemente viveu num momento da história do país em que esses foram os lemas e as bandeiras vitoriosos (sic). Os derrotados ou esquecidos – gaúchos, índios, montoneros, federalistas, mulheres, imigrantes pobres – não puderam celebrar em igualdade de condições as conquistas dos novos tempos” [13].
Assim, Sarmiento por sua obra, discursa suas pretensões políticas e desejos administrativos em exterminar a barbárie e europeizar a Argentina, como se o modelo europeu fosse o absoluto em civilização e seus concidadãos imunes a barbárie. Politicamente, foi embaixador, governador, e presidente da República. Morreu no de 1888, mas sua obra continua a incutir na mente dos seus leitores, quer seja “bárbaro” ou “civilizado”, a concepção de quem é e como vive o “outro”.    

BIBLIOGRAFIA

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos; 39a Ed.; RJ 2000. Publifolha.
PRADO, Maria Ligia, - América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos: Para Ler o Facundo de Sarmiento. 
SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo – Civilização e Barbárie; tradução Jaime A. Classen; Ed. Vozes; Petrópolis, RJ; 1996.

Sobre o Autor

Bacharel em Teologia formado na FAESP;
Bacharelado e Licenciado em História pela FIEO;
Palestrante, Conferencista em diversos eventos;
Professor de Teologia (IETEB - Osasco/ ITF - Embu);
Escritor de apostilas utilizadas na grade do IETEB, conforme abaixo:
- Curso Básico:  Introdução Bíblica; Antigo Testamento; Novo Testamento;
- Curso Médio: Cristologia; Livros Poeticos; Período Interbíblico
- Bacharel: Cristologia; Livros Poéticos;
- Outros: Bibliologia Geral; Arqueologia Bíblica;
Escritor de diversas Apostilas usadas em Palestras, Estudos e Seminários. Entre outros títulos, citamos: Escatologia; O Adolescente; Laços do Passarinheiro (voltado aos jovens); Liderança/Líder/Relacionamento com o Grupo; Não Sejais Meros Ouvintes (Estudo no Livro de Tiago).


[1] SARMIENTO, Domingo Faustino, Facundo – Civilização e Barbárie; tradução Jaime A. Classen; Ed. Vozes; Petrópolis, RJ; 1996.
[2] Idem, p. 89.
[3] Idem.
[4] Idem, p. 90
[5] Idem, p. 91
[6] Idem, p. 92-94.
[7] Idem, p. 95,96
[8] Idem, p. 96-98
[9] Idem, p. 98
[10] Idem, p. 99
[11] Prado, Maria Ligia, - América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos: Para Ler o Facundo de Sarmiento. P.158. 
[12] Cunha, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos; 39a Ed.; RJ 2000. Publifolha. P.99. 
[13] Prado, Maria Ligia, - América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos: Para Ler o Facundo de Sarmiento. P. 176