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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Meu Próximo, Meu Reflexo

Roberto Albuquerque dos Santos

             Quando as Escrituras orienta os homens a amarem o seu próximo como a si mesmos, coloca os mesmos em um labirinto de contorções íntimas de tal magnitude que, mesmo que fosse possível fugir da responsabilidade, não se poderia fugir da reflexão.
                A motivação para o relacionamento intrapessoal em comunidade é um dos esforços da religião. As pessoas são ensinadas a perdoarem, conviverem com dignidade, serem honestos, que sejam bons pais, bons cidadãos, enfim, pessoas dignas de serem membros da comunidade onde estão inseridos. Enquanto a política concede regras comunitárias, a tradição familiar e a ética religiosa fabricam pessoas donas de um “status quo” onde há um círculo invisível, que se invadido, a guerra está declarada: é o direito a privacidade individual; existência do ego.
                Mas nem só de ética vive um relacionamento. Ele também precisa de tolerância. Portanto, Jesus reforça o dever do homem amar o seu próximo e esse amor precisa ser “como a si mesmo”. Aqui notamos um desafio, um embate, pois o próximo não foi adjetivado, ou seja, não foi dadas especificações de conduta, de classe social, religião, cultura, etnia. Não! O próximo é o outro, é quem possa estar ao lado ou não, em suma, é o semelhante. É nesse contexto que a tolerância é fundamental. Aquilo que uma pessoa não tolera na outra é o que mais a desabilita. O conceito de formatação ao certo e errado não pondera espaço para o diferente, para a inovação, para o desigual, para o individual, para o estilo próprio, para a criação, para o inusitado. É como se todos devessem fazer, caminhar, falar, agir, da mesma forma, como uma gestão empresarial onde tudo é catalogado, padronizado, onde a norma estabelecida por padrões de qualidade precisa ser atingida. A intolerância se manifesta na quebra dessas regras.
            Não existem pessoas ideais para um relacionamento, seja em qualquer âmbito. Não há o “sócio perfeito”, “cônjuge ideal”, “amigo fiel”, etc. Podemos observar sociedades duradouras, casamentos equilibrados e amizades estáveis, mas esses exemplos não englobam a universalidade do relacionamento humano. Uma pessoa pode ter um bom relacionamento profissional e ser intolerante com a família; é esse “bom relacionamento profissional” que desclassifica o homem consigo mesmo, pois tomando como principio a ética profissional, enfrenta a cada dia, relacionamentos voltados a atingir metas e a educação demonstrada no momento não condiz com a realidade. Esse comportamento social é teatralizado, e não deixa de imprimir um feedback nos personagens envolvidos, em que, em sua realidade, sabe que, o “eu” em si, deveria ser como a representação diária. Embora seja necessária, a educação e o trato em uma relação de interesses, serve para – de certa forma – disfarçar a personalidade do ator em cena.
            O Antigo Testamento estar repleto de exemplos de relacionamentos conflitantes. O conflito em si torna-se inevitável, mas as causas e conseqüências jogam no ar as claras razões egoístas, mesquinhas e ambiciosas. Mas nem sempre o conflito configura ausência de amor e existência de ódio. A simples contradição são motivos para celeumas. Exemplo disso é a forma como Jacó e Labão fizeram acordos salariais. Houve intrigas em família, mas Labão não deixou de externar seu afeto ao genro perspicaz.     
            Esse embate do homem consigo mesmo quanto ao dilema do bom relacionamento, e não apenas na esfera da irmandade, mas do amor, do respeito e da aceitação sem cláusulas em letras minúsculas, foi exercitado por Jesus com seus Apóstolos.  Afinal, o Mestre estava preparando pessoas para servirem outras pessoas semelhantes a eles próprios. Se a admoestação do amor ao próximo ecoou do deserto de Sinai – falada para escravos advindos do Egito – às regiões de uma Galiléia frenética pelas palavras do filho de um carpinteiro em plena província Herodiana é porque há importância nesse vaticínio. Assim, o colégio Apostólico foi formado aos padrões contrário à lógica humana. Encontramos Pedro, Tiago e João, pescadores, tendo que lidar com Mateus, um cobrador de impostos à serviço de Roma. Mateus tendo que lidar com Simão, o zelote – membro de uma facção política contra o Império. Judas tendo que se “conformar” com as doações “extravagantes” das pessoas – era contra seus príncipios o “desperdício”, afinal ele era sistemático, como Felipe também o era. A diferença estava na avareza. Enquanto Judas demonstrava ter sistemática organização e avareza, Felipe demonstrava a primeira, menos a última, mas não tinha funcionalidade seus planos sem o meio próprio à mão (ver a multiplicação dos pães). Confrontando as personalidades, Felipe parecia inteligente, mas “devagar”.
            Não é difícil imaginar o desconforto desses tributados pelo Império quando estiveram na casa de Zaqueu e ouviram de Jesus que aquele homem também era “filho de Abraão”; ou Simão, o Zelote ver Jesus ressuscitar a filha de um centurião romano, seus opressores. Que virtude haveria em parar em regiões além das terras sagradas para ouvir uma mãe gritando por uma filha endemoninhada? Ou se deter para conversar com um mendigo cego às portas de Jericó que não tinha como recompensar qualquer ação a ele disposta? Por que conversar com uma mulher imunda pelo sangramento que consigo convivia a mais de uma década? O que havia de honroso em estar com leprosos ou comer com pecadores? Afinal muitos deles não eram estrangeiros ou samaritanos e se não fossem ao menos não eram indignos de estar com a sociedade? Ora, quando os Apóstolos se digladiaram interiormente pelo “incômodo” que o Mestre estava passando pensavam nele ou na embaraçosa situação que estavam passando?  Não demonstravam também aqueles pescadores, cobrador de impostos e nacionalista os mesmos comportamentos repulsivos que lhe eram propostos pelos religiosos e elitizados da época? Não agiam da mesma forma com seu próximo? Não eram os Apóstolos também intolerantes e preconceituosos? Não estava em seus algozes os seus reflexos? Quem se achava vítima dos preconceitos sociais também agia da mesma forma.
            Por isso, precisaram ser ensinados além dos discursos, ou seja, na prática. Jesus os levou para o meio dos excluídos e marginalizados; os fez sentar com eles, comer com eles, sentir a dor que eles sentiam e o desprezo que lhes era peculiar. Os ensinou a entrar na casa dos seus opressores e fazer o bem; os deixou vê-lo chorar por uma sociedade egoísta e comprometida com o poder, o legalismo e a indiferença social; não os ensinou a tratar com indiferença a quem os perseguia; não ousou pronunciar ensinamentos de grandeza, mas os confrontou com suas ambições quando disse que precisavam ser como as crianças; mostrou através da convivência de pouco tempo – cerca de três anos – que a tolerância é o respeito ao espaço do outro, é a aceitação da forma diferente de se realizar algum projeto por mais simples que seja; que a intolerância é uma barreira ao aprendizado e uma manifestação de orgulho próprio e presunção desenfreada; é a incapacidade de aceitar o ponto de vista alheio e sempre achar que é dono da razão; a intolerância não permite que o homem veja seu reflexo no outro.
            Amar o próximo não é apenas estar junto na Igreja nos devocionais; não é aceitar “tapinhas nas costas” como congratulação ou conceber um elogio a outrem como forma de dizer que não é ignorante a determinado assunto ou para ser simpático. O amar a que Jesus se refere é o aceitar críticas e retribuir com melhoria no caráter; é não deixar de fazer o bem mesmo quando incluído em preconceito sórdido; é reconhecer o próximo como seu superior e alegrar-se com o sucesso alheio; é não se permitir a infâmia da alegria pela desgraça alheia; é não ser para que o próximo seja alguém. Isso denota reconhecimento de Deus em si, pois são prerrogativas básicas do que Jesus ensinou a seus Apóstolos.
            No entanto, o aprendizado não é fácil e o reflexo se torna cada vez menos nítido a cada experiência. Por mais que se selecione o “espelho” o reflexo será o mesmo; ainda que haja distorções na imagem, no entanto o foco não mudará. Assim, ninguém tem como escolher pessoas para se relacionar e ser melhor; no final, não deixará de ser o que é se não aprender a lidar com seu “eu”. Jesus disse que quem o visse via o Pai; Paulo afirmou que Jesus era a imagem expressa do Deus invisível; mas não era apenas a divindade que espelhava em Cristo, mas a de todos que o procuraram. Em Jesus vemos amor, humildade, sofrimento, temperança, tolerância, compreensão, etc. porque é o que reflete nele e são essas virtudes que o homem tanto carece. Não há como não ver o reflexo de Cristo em uma pessoa que anda com ele. Amar o próximo como a si mesmo é enxerga-se no outro. É sempre procurar estabelecer um ambiente onde o outro possa estar bem; é não buscar justificativa para ser seletivo na escolha a quem quer que seja; é ignorar o que se classifica por maus hábitos – vendo-os – como fraquezas ou características peculiares e não como defeitos de caráter. Os Apóstolos tiveram essa experiência tanto entre eles quanto com o convívio com os aldeões, mendigos nas beiras das estradas, nos leprosários, nas prisões, etc.
            O homem não adquire maturidade relacional em um ambiente solitário, nem tampouco criando um mundo onde as pessoas não sejam consideradas seus semelhantes, mas motivos de irritação, preconceitos e maledicência. Não se deve amar mais ao próximo do que a Deus, mas não se pode dizer que se ama a Deus se o próximo é motivo de aborrecimento. Se isso se condensa, o reflexo no próximo sempre será frustrante, mas se o contrário se torna realidade, é o reflexo de Cristo que se pode ver em quem ama. Casso persista a primeira fórmula, a profissão de amor a Deus ainda é imatura e a compreensão para com o próximo engatinha, pois não se adquiriu conhecimento de si mesmo. Desse modo, o reflexo do homem se imprimirá de forma cada vez mais distorcida, haja vista sua relação com o seu próximo seja medíocre ou não satisfatória em relação ao Mandamento Divino. Ora, se o cumprimento da Lei é o amor a condição de quem se mostra intolerante ante o outro é de transgressor por omissão. Essa postura foi radicalmente criticada por Jesus quando em diálogo com um mestre anônimo de Israel, lhe citou a parábola do samaritano. Este socorreu um homem em estado mortal junto ao caminho após aquele ter sido assaltado e espancado, contrário a atitude de um Sacerdote e um levita que não apenas evitaram aproximação física com o moribundo, mas lhe omitiram misericórdia. Contrastado com a situação e posto como juiz de quem demonstrou amor, o homem que indagara Jesus acerca de quem seria o seu próximo, emitiu seu reflexo nos dois primeiros, pois não ousou citar nem a procedência do agente socorrente. A atitude do samaritano estava imune do sectarismo religioso ou mesmo político. Sua ação foi deliberada e não se importou em ajudar na recuperação do semelhante sem esperar retribuição por isso. Fez o que esperava que o que fosse a ele feito se estivesse no lugar da vítima; era o que Jesus estava dizendo para que aquele mestre da Lei fizesse: que imitasse o samaritano.
            Jesus definiu o conhecimento de uma árvore pela qualidade do fruto que ela proporciona, assim, subentende-se que o homem é conhecido por aquilo que produz e isso engloba, principalmente, sua convivência com o outro. Esse exercício cotidiano em diversas ocasiões e situações lhe proporciona maturidade quando começa a se conhecer melhor, ou seja, reconhece que aquilo que espera que o façam, não o faz ao outro; aquilo que espera do semelhante, deveria doar primeiro; a forma como se relaciona é seletiva: tolera alguns, a outros rejeita, aos demais ignora ou manifesta irritação. Esses procedimentos formam um labirinto particular; não há nenhum labirinto igual, cada homem forma o seu, pois a individualidade é exclusiva. Cada curva (dia) do labirinto traz um novo desafio e vencido cada desafio, o homem aprende com seu próximo a andarem juntos.        
           
Sobre o Autor
Bacharel em Teologia formado na FAESP;
Bacharelado e Licenciado em História pela FIEO;
Palestrante, Conferencista em diversos eventos;
Professor de Teologia (IETEB - Osasco/ ITF - Embu);
Escritor de apostilas utilizadas na grade do IETEB, conforme abaixo:
- Curso Básico:  Introdução Bíblica; Antigo Testamento; Novo Testamento;
- Curso Médio: Cristologia; Livros Poeticos; Período Interbíblico
- Bacharel: Cristologia; Livros Poéticos;
- Outros: Bibliologia Geral; Arqueologia Bíblica;
Escritor de diversas Apostilas usadas em Palestras, Estudos e Seminários. Entre outros títulos, citamos: Escatologia; O Adolescente; Laços do Passarinheiro (voltado aos jovens);
Liderança/Líder/Relacionamento com o Grupo; Não Sejais Meros Ouvintes (Estudo no Livro de Tiago).